Um dia desses passando pela
sala, entre um afazer e outro, olhei para a TV transmitindo a fatídica Sessão
da Tarde e lá estava mais um filme reprisado. Fui até a cozinha, mas fiquei de
“orelha em pé” (quem tem um cachorro compreende o que isso quer dizer), porque
era um filme de reinos encantados e distantes, não sei porque mas, desde muito
pequeno, estes filmes me encantam (creio já ser tarde demais para abandonar um
velho vício de infância). Durante o filme “Ponte para Terabítia”, me deparo com
um diálogo que me espantou pela profundidade, já que era um filme para o
público infanto-juvenil. Não que filmes para este público não tenham
profundidade, mas discutir Deus e a religião de forma tão séria “do nada”, numa
sessão da tarde (risos), sem avisar antes para nós adultos nos prepararmos para
argumentar?
Refletindo depois (porque
assisti ao filme mais três vezes), me lembrei muito de um livro de Rubem Alves “Perguntaram-me se acredito em Deus”. Se
você não leu, precisa colocá-lo em sua lista de urgências vitais, antes de
entrarmos no diálogo do filme. Lembro de uma estória que o professor sempre
contava (sim, tive a sorte de ser aluno de Rubem Alves):
“O
galo era o mais imponente animal daquela fazenda, toda madrugada ele acordava,
levantava e caminhava ao ponto mais alto do galinheiro, estufava o peito sob o
olhar embasbacado de todos os outros animais, enchia o peito e cantava, cantava
com toda estirpe de um tenor, e logo após o sol nascia no horizonte, ah que
espetáculo, todos os animais ficavam impressionados com este canto e com este
galo, afinal o sol nascia todo o dia apenas quando o galo cantava, que poder, e
claro que todos tinham muito cuidado com o galo, afinal imagina se algo
acontece com ele? Ficariam todos sem sol?
Um
belo dia o galo perdeu a hora e quando acordou, adivinhem? O sol já estava lá a
pino, forte e imponente, e todos os animais zombavam descaradamente do galo,
principalmente, o peru com aquela sua gargalhada peculiar. O galo ficou muito,
muito tempo em depressão e o sol nascia a cada dia sem seu canto mágico, um
belo dia, logo após o sol nascer, o galo levanta com toda pompa, sobe ao canto
mais alto do galinheiro e começa a cantar, todos ficaram sem entender nada, por
que cantar depois de tanto tempo, depois que o sol já havia nascido? Ele então
responde: “antes cantava para o sol nascer e era um louco, hoje canto porque o
sol nasce e sou um poeta!”
Vamos ao diálogo do filme
“Ponte para Terabítia”, que se passa entre três crianças na carroceria de uma
caminhonete ao saírem de um culto matinal. As três crianças são: Jess, May
Belle (irmã de Jess) e Leslie (convidada para aquele culto dominical):
-
Leslie: Gostei
muito te ter ido, toda história de Jesus é interessante não é?
-
May Belle: Não é
interessante, é assustadora, enfiaram pregos nas mãos dele, somos todos
pecadores e Deus fez Jesus morrer por isso.
-
Leslie: Acha que
isso é verdade mesmo?
-
Jess: Está na
Bíblia, Leslie.
-
Leslie: Vocês têm
que acreditar e odeiam, eu não tenho que acreditar e acho maravilhoso.
-
May Belle: Temos
que acreditar na Bíblia, Leslie.
-
Leslie: Por quê?
-
May Belle: Porque
se não acreditar na Bíblia, Deus vai te mandar para o inferno quando você
morrer.
-
Leslie: Nossa,
May Belle! Onde ouviu isso?
-
May Belle: É
verdade, não é Jess? Deus te manda para o inferno se você não acreditar na
Bíblia.
-
Jess: Eu acho
que sim.
-
Leslie: Eu não
acredito. Sinceramente, acho que Deus não sai por aí condenando pessoas a viver
no inferno. Ele está ocupado demais governando tudo isso (apontando para a
Natureza).
Que diálogo interessante
para uma sessão da tarde, me tirou o foco do trabalho naquele momento, parei e fui
assistir ao filme.
Logo lembrei do livro de Rubem
Alves, que responde a uma pergunta desafiadora. Conta ele que esta pergunta foi
feita por uma senhora numa palestra sobre educação e ele a usou para escrever lindamente
este livro confissão. Na obra, é nítida sua provocação a Bíblia e ensinamentos
difundidos e aceitos pelo Cristianismo, ele brinca e desmonta muitas estórias,
criando novas perspectivas, a começar pelo personagem principal do livro que é
um senhor bem velho contador de estórias chamado Benjamim. Os conhecedores do
Antigo Testamento já fizeram a ligação com um dos doze filhos de Jacó que deu
origem ao povo hebreu, ele foi o caçula, sua mãe Raquel morreu no parto, agora
ele já bem idoso faz as narrações.
Qual a ligação entre o trecho
do filme (por que não o filme todo?) e o livro? Os dois tratam do mesmo
assunto, a crença (fé), suas consequências, crises e esperanças.
A questão levantada no
diálogo que mais me chama atenção é “vocês
tem que acreditar e odeiam, eu não tenho que acreditar e acho que é
maravilhoso.” Interessante afirmação, ali existe a religiosidade e uma
perigosa liberdade daqueles que não são obrigados a crer. E tem alguém que é
obrigado a crer? Sim, os religiosos, que vão a cultos matinais, vespertinos,
mas têm dificuldades com o sono porque correm sempre o risco de irem para o
inferno, são obrigados a crer na Bíblia com o único intuito de não irem para o
inferno; é o peso de uma religiosidade.
A transgressora Leslie e o
Mestre Benjamim de Rubem Alves têm muito a conversar, eles são livres e Deus não
é um peso, um fardo, e sim um vento leve que sopra lindas melodias mesmo nas
histórias mais tristes, eles não são obrigados a ouvir a canção, escutam porque
gostam dela, percebem?
Mestre Benjamim conta sobre
um Deus que parece uma fonte de água a jorrar, não para que ninguém não morra
de sede e nem para que todos necessitem ir até lá beber, mas Ele é fonte e
jorra, simplesmente, quem quiser pode ir beber. Um Deus mais poético, menos
cartesiano, livre. A religião cria gaiolas. Não estou aqui defendendo este ou
aquele Deus ou esta ou aquela percepção sobre Deus, estou aqui querendo abrir a
minha gaiola, querendo ouvir e cantar doces melodias. Já se perguntaram porque
nossas promessas para Deus são sempre sacrificiais? Vou deixar de comer, vou
abrir mão disso ou daquilo, para quê?... Porque não podemos prometer escrever
e(ou) recitar um poema para Ele? Não podemos sentar com Ele e ouvir o Prelúdio da Suite nº1 para Violoncelo (Cello) de Bach? Se você a toca, por favor, me chame para este
momento “sacrificial”.
Vamos aprender com Benjamim
ou com Leslie a não sermos obrigados a nada e, de livre espontânea vontade,
ouvir e entoar canções, poemas ou um belo silêncio para Ele, o ETERNO.
Para terminar, não poderia
esquecer o texto do Novo Testamento que fala sobre o filho pródigo. Todos
sabemos da estória desta parábola, em que o filho mais novo pede ao pai sua
parte na herança e sai a gastar e a viver de forma descompromissada, gasta tudo
o que tem enquanto seu irmão mais velho continua ali ao lado do pai a trabalhar
fiel; o mais novo teve que trabalhar cuidando de porcos para sobreviver e
lembrou que os funcionários do pai dele possuíam uma vida mais digna e resolve
voltar e pedir ao pai que o trate como um daqueles funcionários, o pai o recebe
numa festa linda e claro que o aceita como filho, nisso o mais velho fica bravo
pois sempre esteve ali trabalhando e nunca tivera uma festa. Creio que você já
ouviu este texto em muitas mensagens ou palestras, mas o principal quase
ninguém fala, no fundo o pai espantou o mais novo porque este esperava menos e
o mais velho se chateou pois esperava mais, o que aprender nesta história?
Simples, Deus não contabiliza débitos e nem créditos. Viva, pois Ele não espera
nada de você, Ele é uma fonte a jorrar em todos os lugares, na sessão da tarde
ou numa boa conversa com um velho contador de estórias.
E você, acredita em que Deus?
Bibliografia:
ALVES, Rubem. Perguntaram-me
se acredito em Deus. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
CSUPÓ, Gábor. (direção). Ponte
para Terabítia (Bridge toTerabithia). EUA/Nova Zelândia: Walt Disney
Pictures, 2007.
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